47ª Trilogia... A proposta do Luís para mim e para a Ana foi a Cozinha do Vinho. Belo tema que me deixou imediatamente a pensar nas grandes preparações feitas com vinho, do coq au vin à chanfana, passando por faisão ou coelho estufados em vinho tinto ou longas marinadas de porco como a carne à moda das Mercês. Infelizmente todas já aqui apresentadas...
Ficou uma ideia, a de recriar sabores da infância, do cozido das casas da Gândara. Lembrei-me das miudezas de porco em vinha de alhos: a língua, os couratos, o coração, a traqueia que se serviam nos primeiros cozidos depois da matança, acolitados pelos ossos da cabeça, as nóveis morcelas e uma ou outra eventual sobra de enchidos do ano anterior e que compunham os cozidos, até à chegada do novo fumeiro, lá por alturas do carnaval.
Contudo, a dificuldade em encontrar as necessárias vísceras, impossibilitou a apresentação de um cozido que não sendo o das antologias, era muito interessante pela riqueza que lhe davam as partes menos nobres do porco e que marinando longamente em vinho e alho como que se substituiam aos enchidos, compondo um todo harmónico de que concerteza voltarei a falar.
Não havendo cozido e não havendo grande vontade de reeditar os pratos referidos acima, veio-me a vontade de ensaiar uma preparação que nunca me tentou especialmente (por ser um prato de desenrasca, de almoços rápidos em tascos manhosos, etc) mas que depois de ler as atentas sugestões do Luís, lá me decidi a ir aos panados de porco. Carne marinada em vinha de alhos, naturalmente, mas com conta, peso e medida. Foi a minha singela contribuição para esta trilogia, mas que me deu muito prazer, já que me reconciliou com esta preparação e que ficou muito acima da média de todos os panados que já provei, mas que mesmo assim tem alguma margem de evolução (pelo menos, para mim, mas digo isto sem saber).
Pedi no talho para me cortarem uns escalopes da perna (a perna era a do porco, naturalmente e escalopes é um termo desconhecido nos talhos, já que aquilo eram umas febras - ou fêveras, como se diz na Imbicta) que deixei umas quatro horas a marinar em vinho branco (não vou falar sobre vinhos de maçerenagens, que é tema do domínio do gosto e gosto, como bem se sabe, cada um tem o seu) com alho esmagado e picado, um ar de pimenta preta, duas malaguetas secas, uma folha de louro e o competente sal de tempero. Depois foi retirar do frigorífico e escorrer o molho da marinada e passar por farinha de trigo, ovo previamente batido e pão ralado (escolhi a versão farinha|ovo|pão ralado em vez da versão ovo|pão ralado, ambas referidas pelo Luís e esta escolha veio a revelar-se mais feliz). Aqui há que ter bom senso. Passam-se os escalopes por farinha, lavam-se e secam-se as mãos, passam-se por ovo, deitam-se no pão ralado e voltam a secar-se as mãos antes de envolver os escalopes no pão ralado. Secos e molhados à mistura normalmente não funcionam (menos para o Ney Matogrosso) e quer a farinha quer o pão ralado deverão levar um pouco de sal fino. Depois de panar os escalopes, fritam-se em gordura abundante e bem quente (optei por fazer a fritura em óleo, em detrimento da banha de porco ou do azeite e não detestei o resultado) o tempo suficiente para a crosta crestar e a carne coza sem secar. Depois é pousar sobre papel absorvente que absorva os excessos de gordura e servir bem acompanhado :)
Para acompanhar, arroz branco. Tacho com um fundo de azeite, um dente de alho e uma folha de louro. Quando o alho aromatizou o azeite, rejeita-se o alho e junta-se o arroz (agulha, embora o carolino também dê bom resultado). Deixa-se o arroz rebolar no azeite durante um ou dois minutos em lume forte e junta-se água quente (duas vezes e meia o volume do arroz). Deixa-se reganhar fervura, tempera-se com sal e deixa-se cozer dez minutos em lume brando com a tampa. Depois tira-se a tampa, desliga-se o lume e deixa-se mais uns cinco minutos (isto funciona numa vitroceramica e será quase a mesma coisa numa qualquer placa de indução que precisa de recipientes xpto para funcionar ou num fogão eléctrico; num de gás, será um pouco diferente) para o molho reduzir e o arroz ficar mais seco. A completar o ramalhete e já no prato, tomate cortado em pedaços e temperado com flor de sal, orégãos e um fio de bom azeite.
Gostei francamente destes panados e repetirei o ensaio com pequenos acertos. Em primeiro lugar, dada a necessária rapidez da fritura, uns escalopes do lombinho deviam vir que nem ginjas. Quanto à gordura da fritura, hesito. Mas uma passagem recatada por vinha d' alhos não dispenso. E em semana de cozinha do vinho, não há vinho a acasalar com o prato, apenas porque não me apeteceu, isso há quase sempre. Gostei do tema e não me parece que a minha subtil contribuição o tenha desmerecido, como gostei do galo e do atum em vinho, dos meus compagnons de route.