Creio que às vezes há que fundir, refundir e desfundir numa preparação alguns preceitos de cozinha para se alcançarem novos sabores e novas/velhas harmonias. Assim, sem mais, como foi o caso desta preparação inspirada na chanfana da beira (aqui com o porco a substituir a insubstituivel cabra velha) e na sua
roupa velha, de que tinha dado conta
aqui (embora sem fotos), a "sopa" de chanfana que aproveita as sobras da dita, com pão e couves. Muito se poderia pensar, antes de mais que é porco marinado em vinho tinto, assado no púcaro de barro preto e acompanhado de batatas (como a chanfana) e de couves (como a sopa dela). Nada mais errado... É uma variação e a quem varia tudo se lhe permite, até harmonias menos conseguidas o que aqui nem se verificou.
Em todo o caso a inspiração (ou a falta de melhor inspiração) levou-me a marinar uns nacos de perna de porco com pouca gordura em vinho tinto, alho, sal, pimenta preta, louro em folha e um pouco de sal durante quase um dia inteiro. Num tamparuére (graçola antiga) com tampa e no frigorífico (não no congelador, o que também é graçola antiga e sem piada). Aquecido o forno a 170º C, depositou-se a carne e a sua marinada, bem como banha de porco no púcaro de barro preto e o próprio púcaro dentro do forno.
A temperatura de 170º C num forno eléctrico justifica-se em pleno. Embora mais baixa que a temperatura inicial dos fornos a lenha onde se depositava tradicionalmente a chanfana, é possível manter essa temperatura durante o tempo que se quiser, ao contrário dos fornos a lenha que em geral tinham uma baixa inércia térmica, com apenas uma parede de 11 centimetros de barro maciço (tentativas desatradas de aumentar a inércia térmica recorrendo a areia davam como resultado o aparecimento da areia na comida, o que é tudo menos agradável... e irreversível, claro) e uma porta em chapa de ferro de 2 a 3 mm. Para evitar as perdas térmicas no interior do forno atacava-se o elo mais fraco, justamente a porta que era selada e forrada com estrume animal. De qualquer modo, o objectivo é manter uma temperatura tão proxima quanto possivel dos 100º C no interior do púcaro durante o tempo suficiente para amaciar a carne e evaporar parte do líquido e depois deixar a temperatura baixar lentamente (daí o recurso ao material - barro com alguma espessura - e à forma do púcaro, bojudo e com a parte superior mais estreita) deixando que a carne fique macia sem queimar por cima. Claro que no forno elécrico se pode fazer uma chanfana a 100º C, mas aqui o termo chanfana só se aplica à macieza da carne e nunca ao molho, que não reduziria.
Quando o porco estava macio e com o molho reduzido qb desliguei o forno. Acompanhei com as batatas cozidas da chanfana e com as couves da sopa de chanfana. E com o molho.
Esta "chanfana" de porco com as couves a acompanhar foi pensada para provar um vinho do Dão, o Quinta da Falorca Touriga Nacional 2002. Depois de ter provado as
novidades do Dão no fim de semana passado, era tempo de revisitar um Dão clássico e com alguma idade. Este tourigo nunca foi um tourigo floral, antes delicado e elegante, afinado, um tinto de estilista, como já referia JPM no seu Guia de Vinhos de Portugal 2005. E nove anos depois da colheita, continua assim. Lindo ruby nada evoluido na cor, balsamico e algo mineral, com taninos domados mas ainda presentes e acima de tudo, veludo. Muita elegância a compensar alguma falta de complexidade e de profundidade. Bebe-se com enorme prazer, ainda mais se pensarmos que em novo custava € 12,50 à porta da adega e hoje se pode comprar na
Despensa da Praça em Viseu por cerca de € 7,00. Não é para comprar às caixas (até porque não deve haver muito, afinal foram feitas apenas 6.634 garrafas - a minha era a 4142) mas é, para quem o encontrar, é um vinho a provar. Agora, mais para o Natal ou daqui a um ano ou dois, embora não pareça justificar grande guarda. Bom agora, está ele...