Mais uma quarta feira de trilogia com a
Ana e o
Luís, desta vez o tema é
Slow Food.
Quando Marshall MacLuhan lançou a base conceptual do que hoje chamamos de Aldeia Global estava no essencial a reduzir o mundo inteiro à escala de uma aldeia, onde todos se conhecem e onde todos têm um papel importante na vida e no desenvolvimento dessa aldeia (talvez a mais conhecida e aquela onde melhor se percebem estas relações interpessoais de uma forma simplificada seja a aldeia de Astérix e Obélix). Na aldeia global e idealmente, cada indivíduo teria o seu papel, a sua personagem, tal como na aldeia do Astérix; mas (e aplicando uma feliz expressão de Orwell n’ O Triunfo dos Porcos, “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”) é fácil perceber que a globalização não é igual em toda a aldeia, embora exista.
Na questão que agora importa, a da comida, esta “globalização” (ou melhor dizendo, a crescente monopolização das estruturas produtivas, nomeadamente da indústria alimentar) levou a que em Portugal e em pouco mais de vinte anos (mormente com a adesão à CEE, agora UE e a construção da actual rede viária), toda a lógica de distribuição e consumo de alimentos se tenha alterado profundamente. Com efeito, passou-se rapidamente de uma lógica de produção local e regional (mais alargada no caso de Lisboa e em menor escala, do Porto) que dava resposta às necessidades elementares das populações (embora colmatada com a produção própria, do porco e da horta, em meio rural) para a lógica da grande distribuição, uniformizadora da oferta e implacável na procura, obedecendo apenas à regra do maior lucro, em detrimento da qualidade da oferta (e nivelando por baixo, naturalmente). Este modelo de distribuição centralizado requer novos espaços e muitas lojas âncora, como as cadeias de vestuário, os restaurantes e as salas de cinema. Rapidamente, os “pequenos” centros comerciais como o Amoreiras ou o Brasília (e os muitos de “bairro” que se foram fazendo) se tornaram obsoletos e foram-se construindo espaços cada vez maiores, culminando no Colombo, no Dolce Vita Tejo, no Norte Shopping ou no Mar.
Toda a alteração do quadro social e económico, a par da crescente mobilidade das populações e do desenvolvimento das comunicações (móveis e internet) permitiu a aceitação acrítica deste novo modelo de distribuição, como o atestaram as peregrinações de famílias inteiras em fato de treino com carrinhos de compras ou a passear aos domingos durante os anos 90 do século passado. A rede de hipermercados e respectivos espaços comerciais envolventes foram matando calma e paulatinamente o comércio “tradicional”, da mercearia de bairro ao supermercado da aldeia. Também a “terciarização” do país levou à quebra brusca da produção de muitos alimentos da terra e ao recurso generalizado às grandes superfícies para abastecer a despensa. A livre circulação de bens no mercado europeu (e naturalmente, a sua dimensão) ajudou a que muitos produtos produzidos do outro lado do mundo cheguem agora a preços impensáveis há 25 anos, com um quilo de abacaxi feito na Costa Rica a ser mais barato que um quilo de peras do Oeste ou um bife de vaca holandesa abatida na Alemanha a ser mais barato que um bife de vitela Mirandesa ou Barrosã. Outro factor ajuda ainda a explicar em parte aquilo que comemos: as lojas de descontos, como o Lidl ou o Minipreço, por mor de uma politica de publicidade aguerrida (mais até do que a dos hipermercados, talvez) oferecem uma vasta gama de produtos exóticos, como a bolacha Maria espanhola mais barata que o pão e alguns produtos pseudo-étnicos como os molhos orientais que fazem as delícias de todas as pessoas que os tomam como uma evolução no sentido do gosto e não como uma farsa. Tudo o que é novo é bom, basta ver como a Perca do Nilo, o Panga do Mekong ou o Salmão do Viveiro se vulgarizaram na cozinha, em detrimento dos peixes pescados na nossa costa (muito pelo preço mas também pela maior disponibilidade dos peixes de viveiro). Também a generalização dos produtos hiper-manipulados, como os hambúrgueres para aquecer no microondas, os lombinhos, panadinhos, delícias e demais trupe de preparados de peixe, os preparados de “confeitaria” (como os bolos, tortas, pães de leite, croissants e as madalenas, tão apreciadas pelos nossos vizinhos) ou mesmo as milhentas farinhas pré-doseadas para fazer pães de tudo e os inevitáveis caldos caldinhos e calduços, a par com as bebidas pré-formatadas, como a Coca-Cola, os outros refrigerantes e até os vinhos. Isto para não falar do Arroz de Pato, Bacalhau à Brás, sopinhas, pizzas e demais “refeições” pré-preparadas. A própria comunicação social deu cobertura a este nivelamento e a oferta de receitas banais é mais que muita nas revistas, para não falar das receitas da Dica da Semana (Lidl) ou dos folhetos do Pingo Doce ou ainda das receitas online da Vaqueiro, da Nacional, do Mar da Noruega, etc.
Mas este modelo já existia na Europa “civilizada” e em 1986 (pouco depois de abrir o primeiro continente em Portugal, o de Matosinhos), aparece o Arcigola, antecessor do Movimento Slow Food, constituído em 1989, que por oposição ao Fast Food iria preconizar o culto da boa comida e de algum modo, por oposição à Global Village, o respeito pela biodiversidade no mundo, em vez da crescente massificação a que assistimos. O movimento Slow Food advoga a cozinha do Terroir, o uso dos ingredientes da terra cultivados segundo boas práticas agrícolas, colhidos no seu correcto ponto de maturação e consumidos frescos. Naturalmente, os peixes deveriam provir de capturas sustentadas e a carne de animais de pasto.
Confesso-me adepto da cozinha do Terroir. Ir apanhar uma tangerina a uma tangerineira e ver que é diferente da outra colhida na tangerineira ao lado, apenas porque uma delas apanha mais sol é uma experiencia que infelizmente é cada vez mais rara, neste mundo onde a fruta é padronizada, classificada, calibrada, envernizada, etiquetada, refrigerada, transportada e vendida e no fim não sabe a nada. Nada se compara a um produto de produção e consumo sustentados. Não é à toa que o bacalhau cozido com todos continua a ser o prato especial do Natal. É que o equilíbrio daquela mistura de bacalhau a lascar, o bom azeite e acima de tudo, as pencas que levaram com geada em cima é algo de único e irrepetível, por exemplo, no Verão. E os exemplos podiam suceder-se em catadupa. O pão, por exemplo. Já não há bom pão, mas a proliferação das MFP e farinhas pré-preparadas fazem as pessoas acreditar que sim. E depois é ver pão e mais pão a ser apresentado como se se tivesse descoberto a pólvora, quando afinal é todo feito da mesma maneira, a farinha é igual, o fermento é igual. Como o vinho. A maior parte dos vinhos da distribuição são feitos para um gosto pré-formatado e produzidos em quantidades que permitam abastecer todas as superfícies. Mesmo na recente Feira de Vinhos Seleccionados de Portugal, feita pelo Pingo Doce e muito provavelmente a melhor de todas, a grande maioria dos vinhos era mais do mesmo, nada de muito novo.
Em Portugal o conceito de Slow Food será muito difícil de se generalizar, já que a oferta de produtos formatados é rainha (e já agora, o gosto, ou a falta dele, que os aceitou). Claro que há pequenos produtores que usam práticas biodinâmicas, mas fazem-se pagar muito bem por isso e quase não chegam ao mercado global, dominado por meia dúzia de grupos Económicos (é como a gasolina, não adianta andar a passar emails de protesto e dizer que se vai boicotar a Galp ou a BP, a gasolina vem toda do mesmo sítio e as diferenças de cêntimos entre as distribuidoras servem apenas para nos manter entretidos e arredados da verdadeira questão: estamos a pagar demasiado e ponto final). Aliás, é interessante constatar como há manobras básicas de marketing que nos arredam sistematicamente das questões essenciais. Os produtos de marca branca, por exemplo, versus os produtos de marca. Qual é a diferença ente o leite linha branca e o leite seleccionado da quinta A, B ou C? O de linha branca não vem da vaca? Vem, mas não vem da mesma vaca que dava o leite acabado de tirar e que era fervido e bebido. Ao leite, tudo se tira e tudo se dá. Tira-se-lhe a nata, dá-se-lhe suplementos, pasteuriza-se, embala-se e vende-se. Fazem-se mil subprodutos. E vendem-se. O iogurte líquido, de preferência em embalagens padronizadas de 180 ml para se reciclar (quando se recicla) muito plástico. A embalagem deve custar tanto como o produto, mas as embalagens são de 180 ml em toda a parte. O preço varia mais em função da atractividade do rótulo do que da qualidade do produto. Em síntese, cada vez mais o mercado oferece o que quer e nós limitamo-nos a comprar. That’ s it…
E para responder ao desafio lançado pelo Luís, decidi fazer uma experiência com comida fast food padronizada e outra com uma preparação a roçar o slow food e provei dois vinhos do mesmo Produtor, varietais, um de uma casta tradicional e outro de uma outra importada.
O prato fast food é uma coisa daquelas de cantina ou de restaurante onde se almoça a correr: croquetes de carne guarnecidos com arroz e salada. Croquetes pré-preparados do Minipreço, congelados. Apesar de terem sido fritos em óleo novo (coisa rara na maioria dos restaurantes) eram uma porcaria. A alface, igualmente má. Salvou-se o arroz, mas apenas porque usei arroz carolino... Vantagens? Fiz o jantar em vinte minutos. Desvantagens? Todas!
O vinho faz parte da linha de varietais da Adega Cooperativa de Pegões e foi feito com Syrah, uma das castas mais "globalizadas" do mundo vinícola. Na Península de Setubal, esta casta fez história quando o Syrah 2005 ganhou uma medalha de ouro num concurso internacional. Claro que passou a ser chamado o melhor vinho do mundo e a procura e os preços dispararam. O lado bom da coisa é que os bons vinhos da Casa Ermelinda de Freitas ficaram mais conhecidos do público. Este Syrah 2009 do Eng. Jaime Quendera é um vinho bem feito, ainda muito jovem, com boa fruta bem madura mas sem sobrematurações, com madeira qb, redondo e guloso, com notas de chocolate e um fim longo. Os 14,5º de álcool aconselham ligeira refrigeração. É polido e muito fácil de beber. Estes varietais estão a € 3,99 no Jumbo, pelo que é de aproveitar.
O prato slow food é um arremedo do Rancho à moda de Viseu. Não levou vitela de pasto nem galinha pica no chão, apenas pernil de porco e enchidos certificados (o que não quer dizer absolutamente nada). Também não levou batatas a engrossar o caldo. Foi um exercício apenas para poder dizer que lhe posso chamar slow food. E posso? Posso, afinal a base conceptual do prato respeita todos os fundamentos do slow food e ainda mais um: é daqueles pratos que, ao que parece surgiu dum aproveitamento e rapidamente se vulgarizou. E nestas comidas tradicionais de tacho não é pecado suprimir, acrescentar ou substituir ingredientes. Desde que não se chame atum ao cão.
Para este prato escolhi o Trincadeira de 2007. Um belo exemplo de um Trincadeira estreme, com muito boa estrutura e menos guloso que outros que provei recentemente como o Vila Santa Trincadeira ou o Cortes de Cima Trincadeira. Não tem a facilidade de agradar do Syrah, antes pede algum tempo e já agora alguma atenção para mostrar o que vale. Por mim, gostei muito.