quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Alfredo, Marceneiro toda a Vida, para cantar o Fado até à Morte | 12ª Trilogia, a do Fado

Alfredo era marceneiro e fadista e quase sem sair de Lisboa durante os muitos anos que viveu, terá sido uma das pessoas que mais marcou o fado tal qual o conhecemos hoje. Na verdade, Alfredo é quase tão velho como o fado e um dos seus grandes amigos do peito. Tratavam-se cumplicemente por tu e falar do fado sem falar do Alfredo não é falar do fado. Homem simples, o Alfredo era encadernador e fez-se marceneiro para melhor poder cantar o fado. Mais tarde deixa a marcenaria e torna-se num não mercenário do fado, antes uma das suas mais ilustres figuras. Antes de ser Marceneiro era Lulu, alcunha que lhe foi dada pelo seu gosto por roupas vistosas. Apaixonado e namoradeiro, teve várias aventuras e dois filhos, antes de unir o seu destino a Judite, com a qual teve mais três filhos e a companheira da sua vida. Era um homem de hábitos, que se deitava todos os dias religiosamente às nove da manhã. Cantava porque e quando queria e não gostava de ser obrigado a cantar, mas quando cantava era toda uma torrente de fado que emanava de si. Tudo aquilo que choramos, toda a nossa melancolia, toda a nossa grandeza está no fado e no Alfredo, como se o fado e o Alfredo fossem a mesma coisa.

Foi este pequeno texto que escrevi há uns dias que serviu de mote à 12ª trilogia, com a Ana e o Luís. Na verdade, quando há umas duas semanas a 2 passou uma série de documentários sobre o Fado, com guião do Prof. Rui Vieira Nery e apresentação do Carlos do Carmo e inseridos na candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade apresentada à UNESCO, lembrei-me de propor um desafio que fosse além de um prato ou ingrediente específico e propus que convidássemos um(a) fadista para jantar. E escolhi o Alfredo Marceneiro, talvez porque é dos grandes fadistas, um dos que mais mal conheço e queria, virtualmente* aproveitar o “jantar” para aprender mais coisas sobre essa canção que rima com Lisboa e cheira a ela.



Alfredo Marceneiro

Mas não o podia convidar para jantar e oferecer-lhe os petiscos usuais da tradição das Casas de Fado e que o Luís muito bem ilustrou no seu post (às vezes penso que estas trilogias se fossem combinadas não saíriam melhores), pelo que o jantar, foi quase um anti-jantar (mas que estou convicto de que seria do agrado desse grande vulto do Fado).

Começámos por abrir um vinho branco, que seria a companhia para o jantar, um Quinta das Bágeiras Garrafeira 2002 em Magnum, talvez o maís atípico dos Garrafeiras Brancos do Mário Nuno, mas que, também talvez pela atipicidade do ano, é dos que mais me agrada. Não terá a elegância do 2004 ou do 2007, mas é pujante, grande, grande vinho...


 Para começar, um Creme de Marisco, feito com camarões, mexilhões e ameijoas. Cozi os mariscos, tirei os mexilhões e as ameijoas das cascas e descasquei os camarões. Reservei. Juntei as cabeças dos camarões à água da cozedura e deixei em lume brando durante perto de uma hora para melhor extraír os sabores. Num tacho, deitei um fundo de azeite, um dente de alho esmagado, uma cebola picada e deixei a cebola ficar translúcida. Adicionei polpa de tomate e deixei refogar ligeiramente em lume brando; juntei o caldo da cozedura dos mariscos, passei a varinha até obter um creme e juntei os mariscos reservados. Temperei com sal e pimenta branca qb. Servi com uns tocos de pão torrado e umas folhas de hortelã para refrescar.   




Depois, foi a vez do prato principal, uns

 Escalopes de porco enrolados e recheados com presunto e queijo de São Jorge estufados em molho de tomate e champignons e acompanhados por esparguete cozido al dente e aromatizado com queijo de São Jorge e salada de verdes temperada com azeite e flor de sal.  



Um prato banal e inspirado nos estereótipos da cozinha Mediterrânica e Italiana, mas que se revelou delicioso. Uns simples escalopes da perna do porco que cobri com uma tira de presunto e queijo de São Jorge e que enrolei. Fechei-os com um palito, alourei-os em azeite e reservei. Piquei uma cebola para um tacho de fundo grosso, juntei um pouco de alho esmagado, o azeite onde alourei os bifes enrolados e levei o tacho a lume brando até translucidar a cebola. Juntei polpa de tomate, pimenta preta, uma folha de louro e os bifes. Deixei em lume brando cerca de uma hora. Juntei champignons de Paris cortados em fatias finas, deixei uns cinco minutos, desliguei o lume e deixei harmonizar os sabores. Acompanhei com esparguete cozido al dente em água e um fio de azeite e aromatizado com queijo de São Jorge ralado e uma salada de verdes (e vermelhos)...


Entretanto, a Magnum de Bágeiras tinha acabado e na linha de vinhos brancos com alguma idade, resolvi abrir um Quinta da Murta Reserva 2005. Depois do Bical e Maria Gomes das vinhas velhas da Fogueira, as uvas de Arinto de Bucelas da Quinta da Murta. Mais um vinho feito para aguentar uns anos em cave e que surpreendeu pela positiva. Ainda fresco e já com a complexidade dum branco "velho" será um vinho a voltar a provar...



Para sobremesa, um clássico, Marrons Glaceés. Gostava de as ter feito em casa, mas desta vez optei pela facilidade da compra e servi umas Espanholas, vendidas em frascos em qualquer loja gourmet ou num hipermercado Jumbo... 





Para acompanhar as castanhas, demos a volta ao largo de Lisboa e passámos de Bucelas a Azeitão. Dum Arinto a um Moscatel Roxo com quase 20 anos. Um vinho da JP Vinhos que (tanto quanto sei) já não se faz e que tinha uma relação qualidade/preço invejável. Untuoso, com boas notas de frutos secos e especiarias, algo delgado de corpo mas com um belo final, é um belo exemplo de um Moscatel Roxo.  



* na verdade limitei-me a fazer ler umas coisas para ficar a saber um pouco mais da história do fado e deste magistral fadista.   

    
Com lídima expressão e voz sentida

Hei-de cumprir no Mundo a minha sorte

Alfredo Marceneiro toda a vida

Para cantar o fado até à morte.



Orgulho-me de ser em toda a parte

Português e fadista verdadeiro,

Eu que me chamo Alfredo, mas Duarte

Sou para toda a gente o Marceneiro.



Este apelido em mim, que pouco valho,

Da minha honestidade é forte indício.

Sou Marceneiro, sim, porque trabalho,

Marceneiro no fado e no ofício.



Ao fado consagrei a vida inteira

E há muito, por direito de conquista.

Sou fadista, mas à minha maneira,

À maneira melhor de ser fadista.



E se alguém duvidar crave uma espada

Sem dó numa guitarra para crer,

A alma da guitarra mutilada

Dentro da minha alma há-de gemer





Gostei muito desta trilogia e ficarei a aguardar a próxima, desta vez a proposta da Ana.


1 comentário:

  1. Tu esmeraste-te mesmo, assim, logo a lançar uma refeição completa... até eu, que não canto fados, me sentaria de bom grado à tua mesa fadista...
    Beijinhos.

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