segunda-feira, 25 de abril de 2011

Tigelada

Portugal existe há muitos anos, desde que o cardeal Orlando Bandinelli nos deu aval para sermos gente. A partir dessa bula do papa alexandre, o terceiro, o nosso primeiro afonso desatou a correr, a desbravar e a conquistar território. Conquistou serras e mouros e com afonsos e sanchos, fomos aprendendo a lidar com o fausto. Tivémos um diniz, um manoel e um sebastião e mais uma míriade de reis. Fomos espanhóis com os filipes e há cem anos quando percebemos a estroinice do carlos e restante família, ficámos com inveja e limpámos-lhe o sebo. A partir daí foi a rebaldaria que se sabe. Primeiro veio o senhor antónio de santa combinha, pagou as contas, mas apagou a luz durante quase cinquenta anos. Como agora não há senhores antónios e as contas subiram muito, tiveram que vir uns senhores de fora. Eles pagam, eles emprestam, né filho? escreveu José Mário Branco nos idos de fevereiro de 1979 antevendo o futuro 32 anos depois, outra vez. E nestes novecentos anos de estórias muito pouco mudou, com mandantes fracos que fazem fraca a forte gente e a serem fortes com os fracos e fracos com os fortes. E o povo? é ver quem se vai abotoar com os vinte e cinco tostões da riqueza que vais produzir amanhã nas tuas oito horas de trabalho, como escreveu José Mário Branco nos idos de fevereiro de 1979 antevendo o futuro 32 anos depois, outra vez. No essêncial tudo se resume a ver quem se vai abotoar com os tais vinte e cinco tostões, se o banco, se a seguradora, se a gasolineira, se a companhia da electricidade se os mais sei lá eu bem quem. E o povo? inventa dias para comemorar e esquecer o jugo. É o dia dos namorados, o dia das bruxas, o dia de carnaval (não confundir com entrudo), os dias dos santos, o dia do dia, que dia é hoje, pá? como escreveu José Mário Branco nos idos de fevereiro de 1979 antevendo o futuro 32 anos depois, outra vez. 

E para a comemoração ter mais peso há que a revestir de uma profunda carga icónica e no dia dos namorados janta-se fora, no dia de carnaval tira-se a roupa mesmo que caia granizo, no dia das bruxas esventram-se abóboras and so on and so on como não escreveu José Mário Branco nos idos de fevereiro de 1979 antevendo o futuro 32 anos depois, outra vez.

E no dia de Páscoa celebra-se, com a morte e ressurreição de Cristo, o ritual da passagem para uma nova ordem que se renova todos os anos sempre ao domingo e que antecede a queima das fitas, o ritual da passagem para uma nova ordem que se renova todos os anos e que dura uma semana.  

E no dia de Páscoa celebra-se, com a morte e ressurreição de Cristo, o ritual da passagem para uma nova ordem que se renova todos os anos sempre ao domingo e que se calhar em vésperas do dia da liberdade, junta-se-lhe uma tolerância de ponto e vai tudo de férias uma semana que para a semana o dia do trabalhador calha a um domingo.
 
Mas há muito, muito tempo (mais precisamente em fevereiro de 1979, quando o José Mário Branco estava a escrever sobre o senhor FMI, o tal que nos empresta os euros de que precisamos para ir comprar uma lasanha ao lidl e um mercedes ao stand) não havia férias na páscoa (quer dizer, havia, mas era só para as crianças descansarem da Escola, que na altura não havia magalhães nem autocarros para lloret del mar) e o dia de Páscoa era uma festa. Flores à entrada das casas para receber o senhor prior e a Boa Nova, a Ressurreição de Cristo. E para celebrar, almoço melhorado com direito a sobremesa e tudo. Não daquelas sobremesas da doçaria conventual que nos fazem acreditar termos a melhor doçaria do mundo (essas nasceram de um acaso, o do excesso de gemas que as ociosas freiras rapidamente transformaram nas suas barrigas e gargantas, nas orelhas do senhor abade, nas morcelas da santa mafalda, em jesuitas, em clarinhas, em papos de anjo, em toucinho do céu and so on and so on...) mas doces do povo, com tudo a ter conta, peso e medida, que trinta gemas é um mês de trabalho de uma galinha, o que não é dispiciendo.
 
E um dos doces da Páscoa da Beira Litoral é a Tigelada. Doce da tradição, cristalizado por Maria de Lourdes Modesto na sua Cozinha Tradicional Portuguesa, feito com um litro de leite, oito ovos inteiros, trezentas e cinquenta gramas de açúcar, duas colheres de sopa de farinha de trigo e duas colheres de chá de canela. Batem-se os ovos com a canela. Dissolve-se a farinha num pouco de leite frio, junta-se o leite restante e de seguida adicionam-se os ovos com o açúcar e mexe-se tudo muito bem. Entretanto tem-se o forno pré-aquecido, mete-se-lhe lá dentro um recipiente de barro vidrado e quando este está bem quente, retira-se do forno. Verte-se a mistura e leva-se a cozer ao forno durante cerca de uma hora. É aconselhavel fazer o teste do palito e não deixar queimar. Serve-se.
  


Esta é a receita tradicional da Beira Litoral. Há uma variante da Beira Alta e de Oliveira do Hospital que leva mais ovos e mais açúcar. Curiosamente, os ingredientes são próximos dos do leite creme, embora a textura nada tenha a ver. Menos curioso é o facto de, como se esperava, as publicações da tigelada em blogues de comidinhas ser tudo menos rigorosa. Vi várias que eram feitas como o leite creme e finalizadas no forno. Confusão, cozinha de fusão, ou simples trapalhice?

Já agora, agradeço à RTP o pronto envio do livro "conta-me como foi", que ganhei no desafio do Cinco Quartos de Laranja. O livro é bem feito e merece estar em qualquer cozinha.

  

3 comentários:

  1. Como seria de esperar, aqui não há lamechices de 25 de Abril.
    Distribuíste belos cravos (coloridos e) reflexivos para quem os quiser apanhar... e ofereceste uma maravilhosa tigelada de fazer babar até quem não for guloso.
    Giro como estas sobremesas tão especiais não são nada do «outro mundo» de fazer e ficam maravilhosas até dizer chega...
    Parabéns também pelo livro! Foi mais que bem merecido...
    Beijinhos.

    ResponderEliminar
  2. Grande discurso, sim senhor, gostei de tudo, mas ainda vou voltar para ler melhor, mas gostei mesmo do inicio, das conquistas aos mouros, lol.

    ResponderEliminar
  3. As tigeladas são, mais do que obra de receita certinha ou tradicional, resultado de um forno fulgurante e da "tigela" de barro essencial a uma boa tigelada. Já as comi excelentes feitas por alguma das muitas receitas respeitáveis (porque eficientes) que existem e até feitas com "técnica" de leite creme prévio e acabamento no forno (e que boas estavam!).
    É um doce que se avalia bem pelo resultado e mal pelo cânone ou não-cânone seguido e para mim não há como as de Ponte de Sôr.

    ResponderEliminar