Decidi escolher uma modesta Obra de um modesto Autor que até praticava medicina e que nos obrigavam a ler aos doze anos, bem como a interpretar "coisas".
O Autor dispensa apresentações (só não foi apresentado aos tipos do Nobel, infelizmente), a sua Obra é mais que lida e sobretudo, mais que reconhecida. Constitui, no seu todo uma das mais belas heranças do século passado, uma perturbante e às vezes arrepiante cosmogonia que por acaso mora mesmo aqui ao lado, em qualquer das aldeias, dos seus habitantes, dos factos narrados.
É ao mesmo tempo de um absoluto rigor e de uma desconcertante simplicidade (como é que se consegue condensar tanta vida em tão poucas páginas?).
Da Enorme Obra de Miguel Torga escolhi os "Contos da Montanha", publicados em 1941. Porquê? Porque é daqueles livros que sempre que se leem nos mostram um ou outro pormenor descurado em leituras anteriores, porque a sua dimensão física está nos antípodas do que intelectualmente nos dá e porque podemos sempre depois de um conto, fazer uma pausa... mas só depois de ler este prefácio:
Prefácio à Quarta Edição
Depois de muitos anos de desterro, regressam novamente ao torrão natal os heróis deste atribulado livro. Numa época em que tantos portugueses de carne e osso emigraram por fome de pão, exilaram-se eles, lusitanos de papel e tinta, por falta de liberdade. Enfarpelados num duro surrobeco de embarcadiços, lá se foram afoita- mente em demanda do Brasil, o seio sempre acolhedor das nossas aflições. E ali viveram, generosamente acarinhados, assistidos de longe pela ternura correctiva do autor. Voltam agora ao berço, roídos de saudades. E não é sem apreensão que os vejo pisar, já menos toscos de aparência, o amado chão da origem. É que muita água correu sob a ponte desde que se ausentaram. Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados - num palco de desolação. Almas amarfanhadas e terras em pousio. Que alento poderá receber dum ambiente assim uma esperança de torna-viagem? Mas a pátria é um iman, mesmo quando a universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos tacanhos limites do planeta. Poucos resistem à sua atracção ao verem-se longe dela, seja qual for a órbita em que se movam. Até os seus filhos de ficção. Por mais fortuna que tenham pelo mundo a cabo, é com o ninho onde nasceram que sonham noite e dia. É que só nele se exprimem correctamente, estão certos nos gestos, são realmente quem são. De maneira que não me atrevi a contrariar a vinda das minhas humildes criaturas, como a prudência talvez aconselhasse. Pelo contrário: favoreci-a. Pode ser que o exemplo seja seguido, e o êxodo, que empobreceu a nação, comece a fazer-se em sentido inverso, e as nossas misérias e tristezas mudem de fisionomia. Portugal necessita urgentemente de ser repovoado.
S. Martinho de Anta, Natal de 1968
Miguel Torga
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Um livro maravilhoso este!
ResponderEliminarAgora viajei até ao Secundário (liceu, naquela altura), quando ainda se liam estes Contos da Montanha... e eu tinha 15 anitos.
Obrigada pelo passeio...
Beijo.
Um prefácio super actual. Portugal continua a precisar de ser repovoado e lido nas escritas de um génio...
ResponderEliminarObrigada pela participação Cupido, és "O Sócio" masculino da engrenagem académica :)
Bem-vindo à academia! E logo com Miguel Torga. Que bela escolha. Já li muitas coisas dele mas não "Os Contos da Montanha". Acho que vou aceitar a sugestão.
ResponderEliminarAdorei a escolha, Cupido. Miguel Torga é um escritor que eu amo, há muitos anos! É o escritor do qual tenho + livros, desde os Diários, até aos "Bichos", que foi a obra que li na escola. Adoro a sua ligação à terra, e identifico-me com a sua angústia com o mundo que o rodeia e mtas vezes consigo próprio. E a actualidade do prefácio realmente é impressionante: "adultos desiludidos, jovens revoltados - num palco de desolação." Acho que começaste muitíssimo bem. Parabéns.
ResponderEliminarmuito bem escolhido, adoro miguel torga!
ResponderEliminaraliás, eu, que nem sou apreciadora de poesia, gosto da dele.
)
mas gosto ainda mais da prosa, com os contos da montanha à cabeça...
(estou a pensar ainda nestas férias ir ver a terra dele, s. martinho de anta)